Necessidade de mudança

Os custos dos cuidados em saúde têm vindo a aumentar inexoravelmente, representando um peso significativo nos sistemas de saúde dos diferentes países, com impacto nas suas economias e, consequentemente, na economia global. Este aumento constante decorre em parte do aumento da esperança média de vida, mas também do desenvolvimento tecnológico e consequente disponibilidade de novas formas de diagnóstico e tratamento.

Contudo, é conhecido que alguns destes custos resultam de cuidados inadequados, excessiva variabilidade nos resultados clínicos, erros e até fraude. Estudos a nível global demonstram que pelo menos 20% dos gastos em saúde não tem nenhum impacto positivo, nem valor acrescentado para os doentes, ou seja, é desperdício.

É claro a necessidade de mudança, para enfrentar o aumento de custos e as assimetrias nos resultados em saúde, observados a nível mundial, apesar da crescente aposta em Bem-Estar, na qualificação dos profissionais de saúde, bem como no investimento em infraestruturas. Nos últimos 20 anos, diferentes abordagens de gestão têm vindo a ser aplicadas para responder a este desafio: tomada de decisão baseada em evidência (de modo a garantir que fossem aplicadas apenas as intervenções com forte evidência científica de custo-eficácia), melhoria da qualidade da prestação de cuidados (de modo a melhorar os resultados da saúde) e a redução de custos em si. Embora necessárias, todas estas metodologias, que resultaram num impacto moderado, demonstraram ser insuficientes, considerando o crescimento do custo dos cuidados de saúde. É necessária uma nova abordagem,, uma nova maneira de pensar que traduza melhor, de um modo acessível e mais sustentável o valor dos dos cuidados de saúde.

Valor em Saúde

Michael Porter e Elizabeth Teisberg, da Harvard Business School, foram os pioneiros a abordar o conceito de Saúde baseada em Valor (SBV). Introduziram o tema do valor, propondo uma alteração do sistema de saúde centrado nos clínicos, em termos dos procedimentos executados e o custo, para o sistema de saúde centrado no doente e nas suas necessidades. Porter e Teisberg sugeriram uma alteração de foco da actividade para os resultados. Este modelo deriva da integração de saúde e cuidados, no sentido em que o valor para o doente deve incluir todos os resultados medidos por todos os prestadores intervenientes no clico de cuidados. Mais tarde, o Sir Muir Gray explica o conceito de valor na perspetiva da Medicina: “Obsessional improvements in quality and safety continue to be important, but even those meritorious activities must add value, not simply improve performance” [4].

Numa simples equação, Porter representa o valor como a solução para reestruturar o sistema dos cuidados de saúde. A SBV procura aumentar o valor que é extraído dos recursos disponíveis, alcançando os melhores resultados de saúde para o doente, ao mais baixo custo possível. Traduzindo numa simples questão: quanta saúde conseguimos comprar com cada euro/dólar que é gasto?

Portanto, a SBV muda a perspetiva do Sistema de Saúde, anteriormente baseada na atividade dos profissionais de saúde e remuneração por ato médico, para um sistema centrado no doente e organizado em torno do que este precisa. O mesmo signifca que, em vez de avaliarmos os resultados em Saúde por volume de serviço prestado (por exemplo, número de cirurgias, número de dias de internamento), avaliamos por resultados finais da saúde de cada doente: medidos através dos indicadores clínicos, bem como os resportados pelo próprio doente, denominados por patient-reported outcomes.

Esta mudança de paradigma reforça a abordagem dos cuidados de saúde centrados no doente, substituindo o sistema focado no pagamento da atividade clínica, o qual promove a fragmentação na prestação de cuidados, por modelos de reembolso de cuidados integrados.

O modelo de Michael Porter deu início à discussão do conceito de valor em saúde entre os profissionais de saúde e outros intervenientes na Saúde. O conceito está a evoluir e a ser amplamente discutido em diversas comunidades e sistemas de saúde. Na Europa, o modelo de Porter tem vindo a ser discutido como sendo insuficiente no âmbito da cobertura universal da saúde com que os países europeus estão comprometidos.

Valor(es) em Saúde

Sir Muir Gray liderou uma discussão sobre a necessidade de ajustar o modelo de SBV de Michael Porter ao Sistema de Saúde Universal. Na maioria dos países Europeus, os sistemas de saúde universal têm o compromisso, explícito e legalmente estabelecido, de cobrir as necessidades de toda a sua população dentro de um orçamento limitado. Sir Muir Gray propõe uma ligação entre o valor em saúde e os cuidados de saúde da população. Além da abordagem da gestão centrada no doente do modelo de Porter, a avaliação do valor em saúde dos cuidados de saúde deve incluir medidas mais vastas de saúde da população, onde doentes são cidadãos agrupados por necessidades semelhantes. Citando-o: “The context is different in countries where resources are finite and controlled and where in addition to waste there is a need to assess value by estimating the opportunity cost, perhaps better called the opportunity lost because if resources are used on low value activity it is not the taxpayer or the insurance company that suffers, it is other patients denied higher value interventions. Even if an effective intervention is delivered at high quality without waste, it may still represent low value if greater value could be achieved by using that resource to treat another group of patients.” [6].

Como solução, Sir Muir Gray sugere o modelo de Triplo Valor nos cuidados de saúde, que foi implementado no Sistema Nacional de Saúde em Inglaterra (NHS), no programa Right Care, para dar resposta aos desafios de sustentabilidade, equidade e inovação nos sistemas de saúde universal. Este modelo aborda o Valor nos 3 seguintes níveis:

  • Valor individual (ao nível do doente), assegurando que cada um dos valores do doente é a base da tomada de decisão, o que envolve não só medir a experiência do doente, mas afetar a tomada de decisão com base na sua preferência.
  • Valor técnico (ao nível da intervenção clínica), assegurando a optimização de todos os recursos para uma dada situação.
  • Valor alocado (ao nível da população), assegurando que os recursos são alocados de modo óptimo e equitativo, de modo a servir as populações.

Neste modelo de triplo valor o clínico não é só responsável por maximizar os resultados para um dado doente, com o mínimo uso de recursos possível, mas também por evitar desigualdades (por exemplo, em relação à idade ou outros factores sociais).

Em 2019, o Painel de Peritos em Investimento Efectivo em Saúde (EXPH) (2019) deu um passo adicional e sugeriu um Modelo Quádruplo de Valor, para apoiar os sistemas de cuidados de saúde baseados em solidariedade. Neste modelo, um quarto valor é adicionado aos três anteriormente descritos:

  • Valor social, assegurando que a alocação de recursos promove a coesão social, baseada em “participation, solidarity, mutual respect, and recognition of diversity.

O conceito de Valor(es) em Saúde é sugerido pela EXPH como uma perspectiva mais ampla do valor, em particular como um enquadramento para os países membros da União Europeia, com o objectivo comum de tornarem os sistemas de saúde mais eficazes, acessíveis e resilientes.

Iniciativas mundiais

A transformação proposta para SBV, introduzida há 30 anos, está a evoluir a um ritmo elevado. Algumas organizações, como a Cleveland Clinic nos EUA, a Schön Klinik na Alemanha ou o Karolinska Centre na Suécia, entre outros nos EUA e na Europa, iniciaram mudanças relevantes na implementação de uma agenda de criação de valor para o doente, e com resultados marcantes.

A ICHOM foi criada com o propósito de uniformizar a recolha de resultados para suportar a prática de SBV. Ao trabalhar com relevantes partes interessadas na área da Saúde de diferentes países do mundo, a ICHOM tem publicado  muitasnormas (standard sets) para condições clínicas específicas e relevantes mundialmente. Estas normas estão disponíveis em www.ichom.org para apoiar prestadores de cuidados de saúde na implementação da transformação para SBV. São sugeridos percursos clínicos centrados na medição de resultados por avaliação clínica e avaliação do doente de um modo padronizado. Apesar da limitação destes standard sets, ao não considerarem a multimorbilidade específica, mas centrarem-se numa condição, estes têm evoluido e estão a conquistar cada vez mais prestadores de cuidados de saúde na implementação da medição de resultados em saúde.

A OCDE está igualmente a assumir uma posição no contexto do SBV, salientando o problema do desperdício e a necessidade de sistemas de saúde que sejam centrados nas pessoas e promovam cuidados de valor acrescentado. Em 2017, na Reunião Ministerial sobre a Saúde com o tema A Próxima Geração de Reformas na Saúde, o Secretário-Geral Angel Gurría afirmou que colocar as pessoas no centro exige: “asking patients to identify outcomes that matter to them, such as their quality of life and functionality after medical care”. A OCDE está a desenvolver um questionário de indicadores reportados pelos doentes (PaRIS) com o objectivo de publicar indicadores que permitam a comparação a nível internacional das experiências e resultados do ponto de vista dos doentes.

O Economist Intelligent Unit (2016) publicou uma retrospectiva das tendências de SBV na Europa. Inclui a recolha de relatórios a descrever a origem deste modelo nos diferentes países europeus, baseado em pesquisa e entrevistas a peritos. Em resumo, este relatório enumera as seguintes principais conclusões:

  • a controvérsia relativa a medidas de custo-eficácia mantém-se, e estão a evoluir da visão redutora dos fármacos e tecnologia para uma perspectiva mais ampla que inclui outros componentes dos cuidados de saúde;
  • a necessidade da partilha de dados para se obter um âmbito mais amplo de HTA (Health Technology Assessment);
  • a inovação nos preços exige uma colaboração entre governos e indústria;
  • o acesso aos cuidados de saúde tem de ser abordado.

— Sobre o autor —

Enquanto Diretora Executiva, a Ana Rita lidera a componente científica do VOH.CoLAB, desenvolvendo fortes redes colaborativas e multidisciplines com empresas e a academia para implementar pilotos em contexto real com o envolvimento total de pressionais de saúde e doentes, validando ferramentas e metodologias e potenciando a transformação digital em Saúde e qualidade de vida dos cidadãos.

Referências

[1] Fredriksson, J. J., Ebbevi, D. & Savage, C. Pseudo-understanding: An analysis of the dilution of value in healthcare. BMJ Qual. Saf. (2015). doi:10.1136/bmjqs-2014-003803

[2] Tackling Wasteful Spending on Health. OECD Publishing (OECD, 2017). doi:10.1787/9789264266414-en

[3] Porter, M. E. & Teisberg, E. O. Redefining Health Care: Creating Value-Based Competition on Results. (Harvard Business School Press, 2006).

[4] Gray, J. A. M. The shift to personalised and population medicine. The Lancet (2013). doi:10.1016/S0140-6736(13)61590-1

[5]Porter, M. E. What Is Value in Health Care? N. Engl. J. Med. (2010). doi:10.1056/nejmp1011024

[6] Gray, M. & Jani, A. Promoting triple value healthcare in countries with universal healthcare. Healthcare Papers (2016).

[7] Jani, A., Jungmann, S. & Gray, M. Shifting to triple value healthcare: Reflections from England. Z. Evid. Fortbild. Qual. Gesundhwes. (2018). doi:10.1016/j.zefq.2018.01.002

[8] Gray, M. & Jani, A. Promoting triple value healthcare in countries with universal healthcare. Healthcare Papers (2016).

[9] Expert Panel on effective ways of investing in Health (EXPH), Defining value in “value-based healthcare”